
Índigenas do MS enfrentam fome e aumento de 7.500 % dos casos de Covid-19 em 17 dias
7 de junho de 2020Segunda maior etnia do país, o povo Guarani Kaiowá registrou 74 infectados; entrega de cestas básicas a terras não regularizadas estão suspensas
A situação é agravada pela falta de assistência do governo. Lideranças indígenas relatam que a distribuição de cestas básicas pela Fundação Nacional dos Índios (Funai), responsável por defender os direitos desses povos, não tem contemplado todas as aldeias.
Em novembro do ano passado, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, assinou um memorando no qual proibia viagens de servidores do órgão a terras indígenas não homologadas ou regularizadas. Na prática, a decisão afetaria atendimentos relacionados a regularização fundiária, proteção territorial e amparo a políticas públicas.
De acordo com a fundação, existem 235 terras indígenas à espera de regularização. Dessas, 117 estão em fase de estudo, 75 são declaradas (autorizadas para serem demarcadas) e 43, delimitadas (dependem de análise do Ministério da Justiça). Cerca de 500 áreas aguardam reconhecimento.

Justamente nesses locais de insegurança territorial, marcados por conflitos e invasões, que indígenas reportam mais casos de fome e subnutrição. O cenário já era observado antes mesmo da pandemia, mas acabou acentuado pelo isolamento social. A região Sul do país e o estado do Mato Grosso do Sul estão entre as áreas mais impactadas, além de comunidades espalhadas pela Amazônia.
“Antes da chegada do coronavírus, já estávamos enfrentando problemas de fome. A gente depende da ida à cidade para conseguir comprar. Quando começou a pandemia, não foi mais possível sair. Tem aldeias que ficam bem distantes do centro urbano e às vezes nossa entrada é barrada. Os indígenas que estavam trabalhando começaram a ser dispensados e não têm mais como conseguir dinheiro”, disse Tonico Benites, antropólogo e um dos líderes Guarani Kaiowá.
Segundo Benites, a determinação da Funai de deixar de atender terras não homologadas criou um clima de “desespero” em seu povo, já que a maioria das famílias depende das cestas básicas. Em cerca de 15 acampamentos, afirma o antropólogo, não há quase nada para o preparo de refeições. Após recomendação do Ministério Público Federal (MPF), em janeiro, a fundação enviou alimentos no mês seguinte, mas interrompeu de novo a distribuição a partir do início da pandemia. As terras regularizadas continuaram recebendo subsídios do governo estadual.

Na aldeia Nhanderu Marangatu, no município sul-mato-grossense de Antônio João, em torno de 160 das 400 famílias ainda não têm cadastro junto à Funai ou ao governo estadual para ter direito às cestas básicas, de acordo com Alenir Aquino, integrante da comissão de liderança da aldeia. Com o confinamento, muitos não conseguem recursos para sobreviver, motivo pelo qual a comunidade tem solicitado doações.
“Estamos pedindo até ajuda ao município, mas não é suficiente. Tem famílias com seis, sete filhos. Dois pacotinhos de arroz não duram. E, sem poder sair, não dá para eles se virarem”, afirmou Aquino.
Para a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sonia Guajajara, a Funai ignora a Constituição Federal ao condicionar a assistência apenas às terras regularizadas e rompe com sua função institucional de guardiã dos direitos indígenas.
“Se está num acampamento, numa terra demarcada ou homologada, o atendimento tem que ser igual. O território indígena não é só aquele demarcado, mas sim aquele que é ocupado tradicionalmente pelos povos. Esse argumento deles é para justificar a negligência. A Funai não vai atender porque tomaram essa decisão de ignorar a presença indígena no país”, afirmou.

A APIB também tem buscado angariar doações e recursos para povos mais necessitados durante a pandemia. No entanto, Guajajara ressalta que a ação não é de competência da associação, mas do Estado brasileiro.
“A gente não pode assumir essa responsabilidade do Estado. A gente faz essa mobilização toda para atender de forma complementar”, disse a coordenadora. “A gente sempre trabalhou para que pudesse atender de forma igualitária independente da etapa do processo de demarcação”.
Em despacho ao qual ÉPOCA teve acesso, a Funai justificou que a distribuição gratuita de alimentos “não constitui obrigação legal” do órgão e citou a “inexistência de suporte orçamentário” para tal demanda. Ainda se baseia em uma decisão da justiça federal do MS que confere à União a tarefa de assistir famílias que vivem em acampamentos não regularizados.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) ratificou, em 2017, a decisão liminar em primeira instância de que o governo estadual deve promover mensalmente a entrega de cestas básicas de alimentos às famílias indígenas em áreas regularizadas, enquanto a distribuição a famílias em áreas não regularizadas ficaria a cargo da União.
O MPF rebateu o argumento da Funai e entendeu que, além do órgão pertencer à União, “estaria se beneficiando da própria torpeza”, uma vez que a não demarcação das terras indígenas foi ocasionada pela demora da própria autarquia em atuar dentro das suas funções legais.
A informação que o MPF recebeu foi de que a Funai não entregou adequadamente as cestas básicas a comunidades indígenas do MS em março e abril desse ano, mas retomou o procedimento em maio, embora indígenas afirmem que só houve promessa por enquanto.
AVANÇO DO CORONAVÍRUS
Nas últimas duas semanas, a preocupação com o avanço de casos de coronavírus em aldeias do estado também aumentou consideravelmente. O primeiro indígena infectado no MS foi constatado no dia 13 de maio, na reserva de Dourados. Era uma funcionária da empresa JBS, onde acreditam que ela tenha sido contaminada. A partir daí, os números dispararam.
Segundo boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no último dia 30, havia 76 indígenas com Covid-19 no estado – 74 deles na reserva de Dourados, a maior do país com mais de 15 mil indígenas. Ao todo, Mato Grosso do Sul tem cerca de 61 mil indígenas, divididos em oito etnias. A principal é a Guarani Kaiowá, com aproximadamente 43 mil membros, conforme dados do último censo, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010.
O balanço não aponta óbitos no estado, mas o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei/MS) apura a morte de uma indígena de 58 anos, no sábado (30), que apresentou sintomas da doença. A Sesai registra 1.737 casos confirmados e 70 óbitos por Covid-19 em todo o Brasil até o último dia 4. Organizações indígenas sustentam que há subnotificação.
Em boletim semanal divulgado na terça (2), a Apib estimou 1.868 contaminados e 182 óbitos entre 78 povos indígenas atingidos pela doença no país. Esse valores representam uma taxa de letalidade de 9,7% entre os indígenas.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), expressou, em nota, preocupação com a disparada de casos entre os Guarani Kaiowá e responsabilizou os órgãos públicos de saúde pela “grave letargia nas ações; inaplicabilidade dos planos de contingência; falta de recursos financeiros, estruturais e humanos”.

Indígenas reclamam de falta de estrutura e de equipe da Sesai para atender as aldeias. O MPF pediu que a União seja obrigada a fornecer equipamentos de proteção individual (EPIs) ao Dsei/MS, bem como a contratação de pessoal, para monitoramento rápido dos casos, e abastecimento do estoque médico. O órgão avalia que há omissão por parte da Sesai e do Dsei/MS.
“A Sesai não tem estrutura nenhuma para atender casos de coronavírus. Já é insuficiente para atender as demandas atuais. Eles não se adaptaram à Covid-19”, afirma Guajajara. “O que fazer agora se o vírus já chegou? Quando ele chega, não atinge uma ou duas pessoas, é como um vendaval que sai arrastando todo mundo. Esse modo de vida comunitário aumenta a propagação com muito mais rapidez”, disse.
OUTRO LADO
Em nota, a Funai afirmou que as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul estão recebendo alimentos em ação articulada pelo governo federal e que, até o momento, distribuiu 7.775 cestas básicas a indígenas em situação de vulnerabilidade social. Disse ainda que as entregas vêm sendo realizadas pelas Coordenações Regionais da Funai Campo Grande, Dourados e Ponta Porã.
A fundação informou que, para as próximas semanas, está prevista a entrega de outras 40 mil cestas adquiridas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com recursos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
A Sesai respondeu que os 34 DSEIs têm realizado normalmente ações de atenção primária, cada um de acordo com a realidade geográfica e logística de sua região. Informou que, por isso, as visitas às aldeias podem ocorrer diariamente, semanalmente ou mensalmente, a depender da forma de acesso ao local.
A secretaria também destacou que tem apoiado a Funai na distribuição de cestas e que, até março, 46,6% das crianças indígenas menores de 5 anos passaram por acompanhamento alimentar e nutricional. Disse ainda que suas equipes de saúde foram orientadas a priorizar o atendimento domiciliar e busca ativa por casos de coronavírus.